Entrevista à estátua de Fernando Pessoa
A estátua de Fernando Pessoa vive dias difíceis, ali ao Chiado. Como se não bastassem os pombos, este conjunto escultórico vive agora no pavor de uma agressão iminente. Uma entrevista angustiante, como poderão confirmar.
Bloff: Boa tarde.
Estátua: Fantasma, quem és tu?
B: É para a entrevista. Combinámos ontem...
E: Pousa a tua mão na minha e, sem me olhares, sorri.
B: Vai-me desculpar, é que eu não sou desses...
E: Ai, desculpe. Isto foge-me sempre para o verso. Faça favor de se sentar.
B: Obrigado. Então, como tem passado?
E: Se sou alegre ou sou triste? Francamente, não o sei. Nem é porque eu sinta uma dor qualquer...
B: Como de costume, portanto.
E: Sim, está tudo certo. Está tudo perfeitamente certo. O pior é que está tudo errado...e, excepto estar errado, é assim mesmo, está certo...
B: Pois. Então, e o que é que se passa com a cadeira, afinal?
E: Ora, eu uma vez escrevi que há dois males: verdade e aspiração. Errei, pois há mais dois: caca de pombo e cadeiras pelos cornos abaixo.
B: Então, é verdade o que se tem dito? Teme pela sua segurança?
E: Tremo de medo:eis o segredo aberto. Não sei o que faça, não sei o que penso.
B: Mas, estando aqui há tantos anos, porque é que só agora começou a ficar preocupado com a cadeira?
E: Olhe aquelas duas ali ( apontando para duas turistas ). Muita curva, muita coisa. Aquilo é material nórdico. Quer ver como é que se faz? Vous êtes belle: on vous adore! Anda cá, não fujas!Separated from thee, treasure of my heart!
B: Desconhecia esta sua faceta...
E: No fundo, somos todos palhaços estrangeiros.
B: E quanto à cadeira...?
E: Cega, porca, lixo! Isto é um perigo. Especialmente agora, desde que aquela senhora reintroduziu a moda...
B: A crónica de Clara Ferreira Alves impressionou-o, portanto?
E: Eis-me em mim absorto...de quilha virada. Isto não se faz. E ainda diz que é minha admiradora! Sabendo que estou para aqui sem me poder defender...e com esta cadeirinha mesmo a jeito. Logo com cadeiras! É boa! Se fossem malmequeres!
B: Mas sabe que a tal crónica não o visava a si. Era em defesa de Durão Barroso...
E: Ah! falta quem o lance ao mar...
B: Não simpatiza com o actual Primeiro-Ministro, presumo?
E: Quem vende a verdade, e a que esquina? (subitamente apontando para o céu) Pombas voando - o pombal elevado está em torno da pomba, ou de lado?
B: Não se preocupe, acho que não vêm para aqui. Voltando à cadeira...
E: Tenho medo, tenho. Há malucos para tudo, sabe? Há para aí pessoas que podem ler os meus versos e pensar que sou masoquista. Olhe, por exemplo, estes: "que já a primeira pancada/tem o som de repetida
...a cada pancada tua/vibrante no céu aberto". Isto para algumas pessoas pode ser perigoso...
B: Receia que uma leitura combinada da crónica e dos seus versos possa colocá-lo em perigo, portanto?
E: Ah, tudo é símbolo e analogia. E a tal senhora até devia saber isso! Ela que não venha agora para aqui pedir desculpa, que eu despacho-a logo: não tragas flores, que eu sofro.
Já imagino a notícia da agressão: "tem as tripas de fora...a cara está um feixe de sangue e de nada".
É horrível! Olhe, mande vir uma aguardentezinha, que eles a mim já não aceitam fiado...
( ao primeiro leitor que identificar todos os poemas de Fernando Pessoa aqui citados, o Bloff oferece quatro dias em Guantanamo, em regime de pensão completa )
1 Comments:
POEMA EM LINHA (T)RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, mas nunca servil,
Indesculpavelmente sujo, corroído, casco de nau com rombo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Nem da humilde farpela sacudir cuspidelas e o ranho,
Apesar de, por vezes, me achar forrado por caca de pombo,
Eu que aqui passo os meus dias, uns frios, outros cálidos, outros mornos,
Eu, que, sem nada haver feito, estou sujeito a levar com uma cadeira nos cornos...
A. de C. (Mal adaptado)
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