Diário de campanha
O Zé do Bloff ( e o irmão )
Íamos na nossa 4L, quase a chegar a Pinóias da Serra, quando encontrámos dois indivíduos a empurrar uma mota, o cansaço espelhado no rosto, os ombros curvados em sinal de derrota iminente. Fizemos sinal para encostar à berma, parámos o carro, abrimos a porta, saímos da viatura, voltámos a fechar a porta e metemos conversa.
O mais alto chamava-se Zé. Apresentou-nos o outro como sendo seu irmão e pouco mais soubemos dessa estranha personagem ( já agora, vão lá ao dicionário e confirmem que "personagem" é um substantivo feminino; depois espalhem por aí a boa nova ).
Ao fim de uns minutos de conversa sobre o tempo e a provável avaria da mota, estranhámos que não soubessem explicar exactamente quais eram as suas profissões. "Êórdenho", disse o Zé. "Êtrafico", acrescentou o irmão.
Ajudámo-los a pôr a mota novamente a funcionar, enfiando a chave na ignição e rodando-a com um movimento brusco do pulso. Não mais esqueceremos a expressão de gratidão nos seus rostos, nem os abraços persistentes que deram às nossas camaradas de campanha.
Aproveitámos esta ocasião, tão rara, para sentir o pulso ao Portugal profundo, esse outro país esquecido que víamos no Tele-Regiões e no TV Rural. Perguntámos-lhes o que pensavam destas eleições para o Parlamento Europeu, se confiavam nos actuais candidatos e na sua capacidade política e diplomática, se acreditavam que Portugal podia beneficiar com a entrada de novos Estados para a União Europeia. O irmão do Zé parecia assustado, repetindo várias vezes a mesma resposta: "ÊnãsênadaÊsótrafico."
O Zé, mais expansivo, assegurou-nos que a irmã, grávida de quatro meses, ia casar com o padre da aldeia e que, ao contrário do que se diz naquelas bandas, não foi o Manel do Moínho que engravidou a Princesa, a cabrinha branca do Sr. Afonso. "Masêcánãsênada", continuou, enquanto olhava insistentemente para o decote de uma camarada de campanha. Quanto à questão europeia, o Zé admitiu ter muitas dúvidas."Êrópa?Issédonde?Êcánãsênadadisse.ÊórdenhaPrincesaesêquenãfôoManelpronto!Agóraquemfõissémelhornêfaládisse". Alarmado pela agitação do Zé, o irmão aproximou-se e ofereceu-nos uma navalha já aberta. Recusámos, conscientes de que essa oferta era sinal de uma generosidade ímpar. "Vãsseláprórácospartantesquelévumachinadaólhócaralhe", disse o irmão, continuando a mostrar a navalha e puxando o Zé na direcção da mota.
Separámo-nos dos dois irmãos, acenando longamente. Lá partiram, estrada fora, de volta à sua labuta diária, nestas serras agrestes que não se deixam dominar pela vontade humana. Com alguma emoção, continuámos o nosso caminho, pois outro palanque nos aguardava (e a banda tinha casamento à tarde). São experiências humanas como esta que nos fazem continuar, que nos dão alento para todas as campanhas presentes e vindouras.
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